segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A casa d'avó

Portão, portas e janelas escancaradas. O interior vazio, sem vivalma.
Entramos? Como podemos, se a casa já não nos pertence?! Toda a aldeia sabe que foi vendida!
Após breves instantes de hesitação, a curiosidade ditou mais alto as suas regras.
Os degraus da escadaria exterior e o patim da entrada estão cobertos de terra, cal caída das paredes, cacos de telha, cigarros fumados… e pó, muito pó… por todo o lado! Tinham-me relatado que por ali, à noite, deambulavam vagabundos e mulheres de mau porte, mas não acreditei. Um exagero, pensei, ou até, quem sabe, pura invenção. Mas não, agora os vestígios não enganavam. A verdade, nua e crua, entrava pelos olhos dentro… e, sem dó nem piedade, infligia rude golpe interior.
- Por que diabo o comprador consentira aquele estado de completo abandono?
Na ocasião em que foi posta à venda, vários vizinhos se mostraram interessados, mas nenhum cobriu a oferta do militar. Um ilustre desconhecido. Dele apenas se sabia que se ausentara do país, em missão de ajuda à Bósnia Herzegovina. Nunca habitou a casa, nem sequer, alguma vez, lá pernoitou! Estranho!
Avançamos pelo corredor principal, a medo, não vá o soalho de madeira desabar a qualquer momento! A meio, surge-nos a extensa varanda de cimento armado, que sobrevoa o páteo interior até à cozinha. Sentimos a segurança física de que precisávamos para prosseguir aquela viagem no tempo.
Uma dúvida, porém, me assaltou: como posso permanecer tão sossegado em casa que deixou de ser da família?
Páro para reflectir, mas sou impedido de o fazer por uma algazarra:
- Pai, que bonito, nunca vi coisa assim!
A estupefacção dos filhos envaidece-me. E, num ápice, vem tudo á memória: o avô, a avó e a tia Olinda. Os momentos que com eles vivi. Tanta brincadeira e correria. Tantas ceias naquela varanda, ao ar fresco da noite. Tanta aventura.
Não queria acreditar naquilo que os olhos viam!
Onde está o lugar de refúgio quando temia o castigo dos pais por alguma asneira cometida?! E a bela estante dos primeiros livros que li?! E o velho Telefunken que inundava a cozinha de belas canções? E a mesa de Natal à beira do fogão de lenha... e a casa alta, lugar nobre destinado a receber o Senhor na Páscoa?
Meu Deus! Nada existe. Tudo reduzido a pó!
Naquele instante, o mundo desabou a meus pés!

11 comentários:

  1. Petrus,
    que bem que escreves!
    e que belas memórias, adorei!

    um beijinho

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  2. Que belo texto, meu amigo!Fiz uma viagem ao passado, ao monte dos meus avós, agora quase a cair, já sem água nem luz porque aquele que o herdou, e tanto lutou por isso, prefere outra casa e não conserva aquela que foi, em tempos, o ninho onde encontrávamos sempre o afago, o bolinho, a história...
    Quanto nos dói esta realidade! Tudo reduzido a pó e , depois, a cinzas, a nada.

    Bem-hajas!

    Beijinho

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  3. Emocionante. Quando eu era menina, minha avó materna tinha uma casa em Santa Cruz da Trapa. Sabe Deus com que sacrifício a comprou, pois teve 11 filhos e o meu avô não tinha um trabalho fixo. Recolhia dos viozinhos o que eles não queriam e vendia na Feira-Velha em S. Pedro. Mas dizia eu que a minha avó tinha uma casa, com um terreno à volta, e um pequeno pinhal. No terreno havia um poço e a casa era daquelas em granito. Tinha uma escada e um alpendre que dava acesso à Casa, e por baixo era a loja, onde guardavam algumas coisas já que não tinham animais. Junto à escada havia um pessegueiro e perto do poço alguns castanheiros. Só lá fui uma vez teria os meus 6 ou 7 anos, os meus irmãos tiveram tosse convulsa, e a minha mãe foi aconselhada a mudar de ares com eles. Claro que apesar de eu não ter ela não me deixou para trás. Nunca mais lá fui. Quando eu tinha 15 anos, os meus avós morreram, um daqueles casos que um morre e o outro vai atrás embora parecesse estar bem até ao falecimento do companheiro. Minha avó se foi dois meses depois. Então os filhos que coitados viviam muito mal e estavam todos com dificuldade, resolveram vender a casa a um emigrante por 110 contos. Há 5 anos atrás, eu fui passar uns dias a S. Pedro do Sul, e senti uma grande vontade de ir ver a casa que apesar de só lá ter estado uma vez trazia gravada na memória. Os donos actuais continuam fora, segundo nos disseram só vêm em Agosto. Acredite ou não, eu abri o portão entrei no terreno, sentei-me na escada fui até ao poço, enfim matei saudades. A Casa estava muito bem conservada, melhor arranjada do que noutro tempo. As janelas tinham portadas e portas novas.
    Imagino que se alguém me viu deve ter achado muito estranho, quem sabe pensou se era um assalto, já que fui com o marido e os irmãos. Quando saímos e fechámos o portão deixamos no terreno a nossa saudade.
    Bom desculpe o comentário tão longo, mas ao ler o seu texto pareceu-me reviver os sentimentos daquela tarde.
    Um abraço

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  4. Que belas memórias! nunca conheci a casa dos avós! os do pai eram Espanhóis da mãe Brasileiros...sempre sonhei como seriam, como seria bom ser mimada por eles, ouvia a descrição dos pais e das suas casas e eu sonhava...sonhava...
    Muito lindo
    Bjs

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  5. sei do que fala

    a realidade está no limiar da nossa memória

    e as casas que amámos continuam inteiras nos lugares insuspeitos do coração

    e de uma varanda onde fomos felizes

    um abraço

    manuela

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  6. Sinto dores semelhantes, quando revejo
    os lugares onde passei muito de minha
    infância e juventude...Tantas moradas
    destruidas, abandonadas...

    Também revelo minhas memórias,Petrus,
    na Cadeirinha de Arruar...Na próxima
    postagem tratarei do Pé de Laranja da
    Terra, do quintal de minha avozinha.

    um abraço,
    da Lúcia

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  7. UM LINDO TEXTO DE MEMÓRIAS!!!
    PARABÉNS!!!
    LÍDIA

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  8. Há memórias que nos batem à porta. Outras vezes batemos nós à porta das nossas mais felizes memórias. E sentimos saudades do que foi e já não pode mais voltar a ser.

    Bjos

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  9. Querido Petrus:
    Enquanto houver memória, a casa dos teus avós é eterna. A estante dos livros permanecerá ali para todo o sempre. O velho Telefunken continuará a inundar a cozinha de belas canções. O fogão de lenha continuará a aquecer o teu coração. A mesa de Natal estará ali, convidativa, como sempre. A casa alta continuará a receber o Senhor na Páscoa. E os teus continuarão ali a receber-te com o seu amor incondicional de sempre. Não os viste, mas eles viram-te a ti e aos teus filhos e tu sentiste a imensidão do seu amor por ti e pelos teus.
    Um grande abraço.

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  10. LINDO texto, que me fez recuar até à minha memória de menina que passava as férias numa aldeia na casa da avó Ana.

    beijinhos

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  11. Quantas lembranças saltaram da memória na leitura deste 'tempo de alma'!

    A quinta da avó era lá para as terras de Basto!

    Refúgio de férias de verão, noites quentes, desfolhadas, cantares ao desafio, algazarra de um grupo grande, os netos, que vinham até à casa da avó!

    Muita sensibilidade neste seu texto!
    Um beijo

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